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A função da legitimação na governança transnacional

Por Poul F. Kjaer1, traduzido por Ana Carolina do Couto e Silva
Revista de Direito Público, 14, 78, 177-96, 2017

Resumo

Ao desenvolver uma teoria social, por meio de um enfoque sociológico, este artigo questiona o porquê da prática social da legitimação ter assumido o papel central no debate sobre ordenamento transnacional. Ao contrário de perspectivas que enxergam o relacionamento entre as formas nacional e transnacional de ordenamento jurídico como um relacionamento sem qualquer soma, a relação coevolucionária e mutuamente encorajadora entre as citadas formas de ordenamento jurídico é aqui defendida e enfatizada. Sustenta-se, ainda, que essa complementaridade pode ser rastreada desde a mais fundamental e diferente função e posição das formas nacionais e transnacionais de ordenamento jurídico na sociedade mundial. A tentativa generalizada de analisar desenvolvimentos transnacionais com base em conceitos de lei e de política derivados de contextos de ordenamentos nacionais é, portanto, problemática. Assim, justamente no sentido oposto, esse artigo defende que conceitos contextualizados de lei e política transnacionais são necessários. E diante dessa necessidade é que o discurso sobre legitimação emergiu no âmbito da governança transnacional. As práticas de legitimação do ordenamento jurídico transnacional podem ser entendidas como equivalentes funcionais da democracia, na medida em que ambas podem ser compreendidas como instrumentos de crescente reflexividade. A diferença central, entretanto, é que contextos legitimados pela democracia implicam uma forma ex ante do político em contraste com a ênfase ex post das práticas de legitimação do ordenamento jurídico transnacional. Além disso, a lei assume um papel instrumental central, pois é através dela que as práticas de legitimação são estruturadas em ambiente transnacional.

Este artigo faz parte de uma série de contribuições à Conferência “Towards a Grammar of Justice in EU Law”, ocorrida em 6 e 7 de novembro de 2014, na VU University Amsterdam, e patrocinada por ACCESS EUROPE Amsterdam, VU Centre for European Legal Studies e Dutch Research Council VENI Grant.

Palavras-chave: legitimação, direito transnacional, política transnacional, governança global, democracia.

I. Introdução

Nos últimos anos, uma série de debates acadêmicos sobre justiça surgiu e destacou-se em relação aos desenvolvimentos transnacionais2. Enquanto o debate em curso tem se desenrolado no terreno normativo, este artigo busca um caminho diferente. Ele apresenta uma reflexão teórico-social, com enfoque sociológico, que questiona o motivo de um movimento de desdobramento em direção à legitimação. Portanto, o foco central consiste mais na prática social da legitimação do que na coerência lógica da argumentação filosófica relativa ao conceito de justiça.

É necessário observar a prática da legitimação nas conjunturas em que ela se desenvolve. Desse modo, a compreensão da própria natureza da governança transnacional de que se parte, consequentemente, tende a ser decisiva para a apreensão da prática da legitimação em contextos transnacionais. Simplificando, o discurso acadêmico sobre governança transnacional em geral e na União Europeia (UE) especificamente é caracterizado por duas abordagens centrais. A primeira busca descrever e avaliar a UE com base em configurações factuais e critérios normativos que emergiram originalmente de âmbitos nacionais. A outra abordagem insiste na ideia de que os processos políticos e jurídicos nacionais e transnacionais são substancialmente diferentes em estrutura e propósito. Com base nessa última perspectiva, as diretrizes normativas existentes, assim como as referências normativas nas quais os processos jurídicos e políticos transnacionais deveriam ser avaliados, são consideradas fundamentalmente diferentes. O argumento desenvolvido neste artigo pertence a essa última categoria, mas repousa em uma fundamentação sociológica específica que provê a base para revogar a antinomia entre o nacional e o transnacional sem resultar em uma lógica de soma zero. Argumenta-se que as formas nacionais e transnacionais de ordenamento social não são mutuamente substituíveis. Ao contrário, elas constituem fenômenos complementares que historicamente emergiram lado a lado, apoiando-se mutuamente. Essa complementariedade pode ser descrita com os conceitos de “condensação” e “transferência”. Por sua vez, esse dois conceitos, respectivamente, servem para delinear a orientação desejada, entendida como a unidade de função e de diretriz normativa dos processos políticos e jurídicos nacionais e transnacionais. Derrubar a antinomia entre o nacional e o transnacional significa dizer que mais soberania implica mais transnacionalidade, e mais transnacionalidade implica mais soberania. Isso também está sendo atestado pelo fato de que, ao contrário da percepção popular, a soberania dos Estados-Nação não tem enfraquecido nas últimas décadas. Ao contrário, desde meados do século XX, desenvolveu-se um fortalecimento da soberania dos Estados em todo o globo.

Como os Estados são os únicos espaços em que a democracia se concretizou e também os únicos espaços com potencial para atuar como espaços democráticos, o fortalecimento do Estado traduz-se em boas notícias para a democracia3. Por outro lado, processos políticos e jurídicos transnacionais não são, por razões estruturais, espaços potenciais para a democracia. Nesse caso, uma compreensão contextualizada da função combinada e do propósito normativo de direito e política transnacionais é necessária. Em suma, conceitos específicos de formas transnacionais de lei e de política, que reflitam a localização, a função e o propósito normativo dos processos transnacionais precisam ser desenvolvidos. É neste cenário que os processos de legitimação têm surgido como um potencial substituto da democracia nos processos políticos transnacionais. Esse desenvolvimento, entretanto, implica focar na função estratégica da lei, na medida em que a lei passa a ser a base pela qual as práticas de legitimação são estruturadas e desenvolvidas.

Complementando o prisma das demais contribuições a essa questão especial, este artigo segue da seguinte maneira: primeiro, a coevolução de longo prazo do Estado moderno e da governança transnacional é brevemente delineada para estabelecer o cenário. Em seguida, a relação entre factualidade e normatividade é analisada com o objetivo de expor a tensão básica que impulsiona os ordenamentos transnacionais e nacionais. Depois disso, a forma e o conteúdo dos contornos políticos no nacional e no transnacional são analisados. Por fim, neste pano de fundo, a guinada à legitimação é abordada e isso é feito enfatizando o papel da lei na estruturação dos processos de legitimação.

1 O trabalho de Poul F. Kjaer é apoiado/custeado pelo Conselho Europeu de Pesquisa (ITEPE 312331). Partes desse trabalho baseiam-se em seu livro Constitutionalism in the Global Realm: A Sociological Approach (Routledge, Londres, 2014).

2 Principalmente: R Forst, Das Recht auf Rechtfertigung – Elemente einer konstruktivistischen Theorie der Gerechtigkeit (Suhrkamp Verlag. Frankfurt am Main, 2007); D Kochenov, G de Búrca e A Williams (ed), Europe´s Justice Deficit? (Hart Publishing, Oxford, 2015); J Neyer, The Justification of Europe. A Political Theory of Supranational Integration (Oxford University Press, Oxford, 2012).

3 G Harste, The Democratic Surplus that Constitutionalized the European Union – Establishing Democratic Governance through Intermediate Institutions, em E Hartmann e P F Kjaer (ed.), The Evolution of Intermediary Institutions in Europe. From Corporatism to Governance (Palgrave Macmillan, Londres, 2015). P. 190-215.